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BOAS INTENÇÕES (parte II)

por Fernando H. F. Sacchetto – 14/11/2011

“Só pra ficar bem claro…” Mirna virou-se para mim. Até então, as atenções estiveram voltadas para Djalma, que se encarregou de contar quase toda a história. “Vocês não tão pensando em voltar lá, né?”

“Bem…” Cocei a cabeça. “Não parece muito prudente fazer isso, né?”

“Tá brincando? Esse cara que eles mencionaram, esse tal Virgulino…”

“Viriato,” corrigi.

“Enfim,” ela prosseguiu, “ele parece bem perigoso. Parece ou um bandido dos poderosos, ou um chefe de milícia… se é que tem diferença.”

“Cê precisava ver a cara do pessoal quando os três malandros chegaram!” Djalma bateu na mesa enquanto falava, fazendo pularem as peças sobre o tabuleiro. “Tava todo mundo se borrando de medo!”

“Ó a mesa, mané!” Comecei a ajeitar o jogo de War que estava entre nós. “Vai tirar tudo do lugar aqui, bem agora que eu tava arrebentando na Rússia!”

Alfredo estava compenetrado, com as mãos entrelaçadas em frente ao rosto. “Renato…” disse, em tom paciente. “Você não nos engana. Sabemos o quanto está ardendo de vontade de descobrir o que ocorreu naquele local. Não adianta negar.”

“Meio difícil de não ter essa curiosidade, né?” retruquei, em tom defensivo.

“Deveras. E é por este motivo que é de suma importância reconhecer esta necessidade, para que se possa rejeitá-la.” Ele se inclinou, com os cotovelos sobre a mesa. “Certos vespeiros não valem a pena ser mexidos, por mais doce que seja o mel dentro deles.”

“Desde quando que vespa faz mel?” Paulinho estava reclinado folgadamente. “Mas ele tem razão, Renato. Encarar um bando de malucos em um sebo na Santa Cecília é uma coisa, mas isso aí é bem mais sério. Do tipo de amanhecer de barriga pra baixo no Rio Tietê, ou sei lá qual que eles usam.”

Mas não foram só os malucos que eu enfrentei no sebo, pensei. “Eu sei, pode deixar. Eu tava lá com vocês, caramba. Eu sei como que o negócio tá tenso.”

Djalma preparou seus exércitos para um ataque. “Mas que dá vontade de perguntar o que foi que o Renato fez lá…”

“Ou o que fizeram comigo! Eles falam que eu toquei o terror, mas fui eu que voltei cheio de hematomas!”

“E cheio de sangue alheio, não se esqueça,” Alfredo indicou.

Mirna olhou para o alto, pensativa. “Você disse que tinha muito cheiro de ervas, certo?”

“De repente isso explica tudo,” disse Paulinho, preparando-se para seu turno. “De repente você só tava bem louco, sabe qual é?”

“Vai se ferrar,” rebati. “Não sou dessa área, só você que é.”

“As tradições mais variadas fazem uso de recursos herbais para expandir a consciência além das fronteiras do mundano,” lembrou Alfredo. “Talvez isso tenha sido utilizado por seus supostos captores em rituais xamânicos.”

“Não, não,” Mirna interrompeu. “É até mais simples que isso. Banho de ervas, gente dançando ao seu redor… de repente você foi parar num terreiro de umbanda.”

Pensei bem. Agora que ela mencionou, as pessoas que passavam de um lado para outro sobre mim realmente pareciam estar fazendo algum tipo de dança. As imagens voltaram à minha mente, ainda vagas e indistintas, mas desta vez eu pude perceber que eram acompanhadas de um batuque. “Quem sabe,” disse. “Até que faz sentido. Eles fazem esse tipo de exorcismo?”

“Ô se fazem!” Ela sorriu. “Só que lá eles chamam de descarrego. Eles chamam alguns espíritos-guia pra ajudar… tipo, orixás, pretos-velhos e tal. Aí eles ficam dançando, sabe, fazendo cada um o gesto típico dele, e o resto do pessoal fica também fazendo banho de ervas e passes.”

“Mas o que é que isso tudo tem a ver com possessão demoníaca?” Os exércitos de Paulinho se despejaram sobre a África do Norte, e ele se estendeu para pegar uma carta. “Eu achei que era só, tipo, padre e pastor que fazia exorcismo.”

“Não, na verdade tem tudo a ver,” ponderei. “Essas religiões afro são baseadas na possessão, certo? Tipo, ser possuído pelos exus e pombagiras da vida? Eu acho perfeitamente coerente eles terem algum método pra se livrar de alguma possessão negativa.”

Mirna levantou o dedo com ar de professora. “A questão toda do descarrego é por causa das energias negativas que a pessoa carrega. Você adquire uma carga negativa pelos problemas da vida, e os espíritos zombeteiros ou outros mal-intencionados são só uma consequência disso.”

“Carga negativa, que eu conheço, ou positiva, qualquer carga, você resolve fazendo um fio-terra,” Djalma disse, rindo. “Né não? Fala aí, Renato!”

“Ei, sai pra lá com esse negócio de fio-terra!” Me afastei dele de brincadeira. “Tá de pombagirice comigo?”

“Vocês tão zoando, mas é bem por aí,” Mirna continuou. “Isso é uma forma de energia, que tem que dar vazão, tem que descarregar. Daí que vem o nome.”

“Pra mim é tudo psicológico,” resmunguei. “Não é conveniente demais que esses tais espíritos ruins que você falou aparecem justo pra quem tá pra baixo?”

“De jeito nenhum! Tem todo motivo pra ser assim. Quando você tá com a imunidade baixa, não aparece todo tipo de doença?”

“Putz, sério que você tá apelando pra biologia agora?”

“Só tô querendo saber uma coisa,” Paulinho interveio, voltando-se para nossa amiga. “Como que você manja tanto assim de umbanda?”

“Ué, eu tenho contato com todo tipo de gente por causa do meu trabalho lá na Secretaria de Educação,” ela respondeu. “Inclusive o pessoal das comunidades mais carentes. As igrejas crentes tão crescendo pra caramba lá, tomando espaço, mas ainda tem muita gente que segue umbanda, candomblé e outras religiões afro-brasileiras.” Ela mexeu distraidamente em alguns exércitos. “E eu mesma andei freqüentando uma vez ou outra. Como eles dizem, eu tenho um pé na cozinha…”

Meu celular tocou. “Alô,” atendi, com uma careta de incômodo.

Alguns segundos de silêncio. “Quem fala?” –perguntou uma voz feminina.

“Tava querendo falar com quem?”

“Quem fala?” –ela insistiu. “Qual é o seu nome?”

“Renato,” disse, sem esconder um tom de irritação. “Quem tá falando?”

“É… J-Jandira,” ela hesitou.

“Não conheço. Tá procurando quem?”

“Acho que é você mesmo. Esse celular é seu, né?”

“Escuta, você vai falar logo o que tá acontecendo aqui?”

“Eu acho que você não se lembra, mas…” Uma pausa tensa. A voz era estranhamente familiar. “A gente se encontrou. Anteontem. Eu… te levei pro ônibus.”

Senti um frio na espinha. “Peraí,” disse, após alguns segundos. “O… o sinal aqui tá ruim. Vou lá pro outro lado.”

Levantei, lançando um breve olhar nervoso para meus amigos intrigados, enquanto me afastava deles e seguia para o quarto, o local mais reservado que pude encontrar de repente. “Pode falar,” continuei, me debruçando sobre a janela.

“Não, só liguei pra ver como que você tava mesmo, aquele dia você tava passado de tudo…”

O rosto da mulata que me assombrava desde quarta-feira voltou à tona, e ouvi a mesma voz em minha memória. “É você, né? Você tava lá!”

“Lá onde?” Ela parecia assustada. “Escuta, eu só tô tentando ajudar, viu!”

“Que foi que vocês fizeram comigo? Pra onde vocês me levaram?”

“Você que devia me agradecer! Depois de tudo…”

“Pô, vocês me amarraram!” Eu estava tentando gritar sussurrando, para que o pessoal na sala não ouvisse. “Você vai me explicar direitinho o que aconteceu! Quem é você?”

“Esquece! Eu não preciso aturar isso!” Ela desligou de repente.

Voltei para o jogo. “Nada não,” disse, meio sem jeito. “Esse pessoal do telemarketing, né? Mó chato…”

“Renato…” A voz de Alfredo era severa. “Tem certeza de que não tem nada para compartilhar?”

“Tô falando, tavam só querendo vender jornal!”

“Tudo bem,” disse Mirna, lançando um olhar para Alfredo. “Se você tá dizendo que foi só isso…”

Continuamos o jogo sob um silêncio pesado, conversando apenas o necessário. Depois que ele chegou ao fim e todos foram embora, procurei a última chamada em meu celular, e retornei a ligação.

“Quê que cê quer?” –ela atendeu, após tocar várias vezes, com uma voz irritada.

“Então,” comecei. “Onde que a gente tava mesmo?”

“Eu não tenho nada pra falar com você,” disse, em tom petulante.

“Ah, é? Então por que foi que você me ligou?”

“Nem sei, viu. Eu é que fui tonta, devia ter deixado você lá de qualquer jeito.”

“Olha…” Respirei fundo. “Eu agradeço de você ter me deixado no ônibus. De verdade, isso me ajudou pra caramba. Mas eu não lembro direito do que aconteceu antes, só sei que eu acordei depois todo arrebentado…”

“Culpa sua,” disse, friamente. “Tá… não foi bem sua, foi daquele exu que tava te cavalgando, mas enfim…”

“Exu? Você quer dizer, aquele demônio? O que aconteceu?”

“Ah, a gente deu um jeito nele!” Senti um certo orgulho em sua voz. “O descarrego foi a maior treta, a gente fez de tudo, banho, pemba, pipoco, gira… mas no fim, com a bênção de Oxóssi e Xangô, o danado bem que desceu.”

“Mesmo?” Caí no sofá. Isso tudo era demais para mim. “Seguinte… é Jandira, né? O que foi que realmente aconteceu? Como que eu fui parar aí?”

“Você não lembra mesmo?” A voz dela era cautelosa. “De nada?”

“Só umas imagens muito vagas de um pessoal dançando por cima de mim, das ervas, do batuque. E… de você. Mas nada antes disso.”

“Sei não… Acho melhor você nem lembrar então.”

“Você não entende, eu…” Esfreguei o rosto. “Pelo menos me diz onde foi que isso tudo aconteceu. É importante. Se eu fiz alguma coisa…”

Ela hesitou por alguns momentos. “Olha, não era pra eu te falar nada, mas… Aparece por aqui. Quem sabe a Mãe Xica pode te ajudar.”

“Mãe Xica? Tipo, ela é a chefe do terreiro aí?”

“É, aqui é o terreiro da Mãe Xica de Aruanda, no Santa Madalena 1. Perto da Sapopemba com a Custódio. Só perguntar quando você chegar aqui perto.”

“Quanto a isso… Eu andei aí por perto ontem, mas teve um pessoal meio estranho que parecia que tava atrás de mim.”

“Os moleques do seu Viriato?” Ela riu. “É, eu ouvi falar. Liga não, tudo um bando de manés. Mas eu mando alguém te buscar no ponto. Pode ser amanhã, lá prumas seis? É que tem gira, você pode chegar aqui numa boa.”

“Beleza, eu te ligo quando estiver chegando. E… Jandira?”

“Oi?”

“Obrigado.”

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