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A Clavícula de Salomão – Epílogo – arquivo para download (formato A4, próprio para impressão)

A Clavícula de Salomão – Epílogo – arquivo para download (formato A5, próprio para e-book)

A CLAVÍCULA DE SALOMÃO (epílogo)

por Fernando H. F. Sacchetto – 21/10/2011

Acordei com um tranco. Eu estava em um ônibus mal-cheiroso. Olhei pela janela; o lugar era desconhecido. Tentei recapitular os eventos que me levaram àquela situação, mas uma dor de cabeça lancinante dificultava minha concentração. Imagens indistintas passavam rapidamente pela minha mente: um local escuro, um cheiro forte de ervas, várias pessoas passando pra lá e pra cá por cima de mim. Febre e dor.

Decidi avaliar melhor meu estado atual. Olhei para baixo, e vi que estava sujo, desgrenhado, com as roupas um pouco rasgadas. Percebi que a maior parte do fedor que eu sentia devia vir de mim mesmo. Minha boca estava seca, com um gosto amargo, e praticamente todo o meu corpo doía. Me espreguicei e me esfreguei um pouco; não parecia estar ferido, ao menos não gravemente. Entretanto, vi marcas nos pulsos e tornozelos, como se tivesse sido amarrado, bem como manchas de sangue que não parecia ser meu, pois eu não tinha ferimentos que as explicassem. Fui sequestrado, pensei. Verifiquei os bolsos, e vi que nada tinha sido roubado, nem mesmo o dinheiro da minha carteira. Estranho pra caramba. Meu celular estava desligado; quando o liguei, percebi que já era quarta-feira, mais de quatro da tarde. Haviam se passado mais de vinte e duas horas desde minha última lembrança, no sebo de Orígenes.

“Amigo,” perguntei para o cobrador. “Onde que a gente tá mesmo?”

Ele me olhou com certa desconfiança. “Avenida Sapopemba.”

Putz. Que é que eu tô fazendo num lugar desses? “Certo… diz aí, que ônibus é esse mesmo, por favor?”

Ele deu uma risadinha. “Tá difícil hoje, hein, colega?”

Encolhi os ombros. Se ele achar que eu sou bebum, que seja. Melhor que saber da verdade. “Tá fogo… nem lembro de onde eu vim. Fazer o quê, né?”

“Pode crê… Esse aqui é o Metrô Belém.”

“Valeu.” Metrô. Ótimo, pelo menos assim eu me localizo. “E, hã… cê lembra de como que eu entrei aqui?”

O riso dele foi mais franco. “Te puseram pra dentro, lá pro começo da avenida. Um crioulo e uma mulata, mó gostosa.” A imagem de uma moça passou rapidamente pela minha cabeça, embaçada. “Tiraram a tua carteira do bolso pra pagar. Eu tive que te colocar aí na cadeira.”

“E deixaram algum nome, falaram alguma coisa?”

“Nada. Só disseram pra te deixar descansar. Ó, se eu fosse você, eu voltava lá pra procurar a mina. Parece que ela foi com a tua cara…”

Tentei recordar a imagem que viera à tona, mas era indistinta, como alguém que se vê da janela de um carro. “Deixa pra lá. Só quero voltar pra casa.”

“Cê que sabe.” O cobrador manteve um silêncio prudente pelo resto da viagem.

Peguei o metrô, e depois o ônibus que costumava tomar para voltar para casa em dias de rodízio. Quando estava chegando, o telefone tocou. Era Paulinho.

“Cara, onde que você tá, pelo amor de Deus?”

“Relaxa, mano. Tô chegando em casa. Qual é a boa?”

“Como assim, cê tá maluco? Todo mundo atrás de você o dia todo! Onde que você tava?”

Boa pergunta, pensei. “É que eu tô meio passando mal hoje… Por isso que eu não fui pro trabalho.”

“Cara, não me vem com essa! Que é que você anda aprontando? É aquele tal de clube de xadrez?”

“Claro que não!” Por que eu menti? “Tava de cama o dia todo.”

“Certo… mas onde? Nenhum telefone teu atende…”

“No hospital,” inventei. Ele saberia que eu não estava em casa, e sabe lá se tinham ligado pra minha mãe ou pros outros parentes. “Já saí, tô acabando de voltar pra casa. Depois eu levo o atestado.” Putz, pra quê eu disse isso? Depois eu vou ter que me virar com esse tal atestado.

“Não esquenta, descansa aí que eu resolvo as coisas por aqui… mas o que você teve?”

“Infecção alimentar. Tava no banheiro o dia todo. Tive que tomar uma pá de soro pra reidratar.” É, acho que funciona. “Olha, desculpa de não ter avisado… acabou a bateria do celular, e eu só fui pensar em pôr pra carregar agora…”

“Bom, pelo menos agora você ligou… cara, que susto cê passou na gente! Mas e amanhã, você vem?”

Parei alguns segundos para analisar minha situação. “Sei não… Se eu estiver sentindo melhor, eu vou. Mas não garanto.” O ônibus chegou ao ponto. “Tô indo descansar agora, beleza?”

“Tranquilo. Até amanhã.”

Ao chegar em casa, fui direto para o banho. Minhas roupas estavam encardidas e cheirando a fumaça (entre outras coisas piores), e as manchas de sangue eram claras. Melhor eu mesmo lavar, decidi. No chuveiro, enquanto procurava a muito custo remover a catinga, aproveitei para avaliar melhor as condições de meu corpo. Além das marcas de cordas, havia diversos hematomas no peito, braços e pernas… mas nenhum ferimento aberto. De onde veio esse sangue, então? Caramba, em que roubada será que eu me meti?

Minha mãe ligou quando eu estava saindo do banho, e meu chefe logo em seguida. Procurei manter a mesma história que havia contado para o Paulinho, pedindo desculpas pela falta de aviso e assegurando-os (principalmente minha mãe) de que agora estava tudo bem. Entretanto, o contato mais inesperado veio mais tarde, quando eu estava fazendo um lanche. Quase derramei meu refrigerante na cozinha toda, de susto, quando a campainha tocou de repente, algo pouco comum no meu condomínio.

“Evelyn,” disse, quando abri a porta. “Você por aqui?”

“Claro, né?” Ela entrou apressadamente. “Você some desse jeito e deixa todo mundo de cabelo em pé! A sua mãe tem mais de sessenta anos, você parou pra pensar nisso? E se ela tem um troço?”

“Sério que você tá me dizendo isso? O que você tem a ver com a minha mãe?”

“Ué, e eu não posso simplesmente ser amiga dela?” perguntou, indignada. “Nós duas sempre tivemos muita intimidade, e não é pra menos. Afinal, a gente tinha que ficar cuidando do mesmo crianção irresponsável… bem, eu não preciso mais, mas a amizade fica, né?”

Comecei a andar em círculos, irritado. “E a necessidade de me azucrinar também, pelo jeito. Você não tinha dito que tava cansada de correr atrás de mim?”

“Não foi nada disso que eu falei.” Ela olhou para o chão. “E, com você sumido desse jeito, e agora dizendo que tava no hospital… eu também fiquei preocupada. Sabe como é.”

“Mesmo?” Parei, surpreso. “Quer dizer… não achei que você fosse…”

“Pode tirar o cavalinho da chuva,” ela cortou, repentinamente. “Não quer dizer nada. É só a simples empatia de um ser humano com outro. Não é todo mundo que vive a vida nem aí pro que acontece ao seu redor, sabia?”

“Escuta…” Pausei para juntar meus pensamentos e decidir como eu me sentia em relação a isso, levantando a mão. “Obrigado por se importar, mas não é o caso de…”

“Que é isso?” Ela se aproximou, olhando para meu pulso. “O que aconteceu aí?”

“Hein? O quê?” Tentei esconder as marcas, envergonhado. “Nada de mais… acho que eles só apertaram demais a faixa na hora de pôr o soro.”

“Renato…” Ela me encarou duramente. “Eu sei quando você tá mentindo.”

“Não tô mentindo!” Me afastei repentinamente. “Você vem aqui de repente, sem nem ligar pra saber se eu posso te receber…”

“Falou o cara que some o dia todo sem avisar ninguém…”

Você vem aqui,” insisti, “do nada, e já começa a me ofender? Me xingar, dizer que eu sou irresponsável, isso e aquilo, falar da minha mãe, e ainda me chama de mentiroso?”

“Mas você quer que eu não questione isso?!” Ela apontou para meu pulso, indignada. “Olha só os seus braços!”

“Pode parar com essa palhaçada.” Abri a porta, e antes que ela tivesse tempo para argumentar, continuei. “Essa é a minha casa, e eu não vou admitir isso. Você não quer mais fazer parte da minha vida, então não faça.”

“É assim, é?” Ela passou pela porta com um ar orgulhoso. “Fique à vontade. Se você quer se prejudicar, sei lá como, vá em frente. Não me importo.”

“Bom saber.” Quando minha ex-namorada finalmente se foi, não me senti satisfeito com isso, como eu achava que me sentiria… mas essa era uma preocupação para outra hora.

Terminei meu lanche, pus uma camisa de mangas compridas para evitar mais questionamentos, e saí pra pegar meu carro. Algo me dizia que ele não estava no meu prédio, o que foi confirmado por uma rápida olhada. Tentei recordar onde o havia deixado da última vez que o vi. Foi ontem, quando eu fui lá naquele maldito sebo, lembrei. Eu deixei na rua. No mínimo, já roubaram.

Fui para lá de metrô, e logo achei o lugar onde eu tinha estacionado, a umas três quadras do sebo. O carro estava lá do mesmo jeito. Entretanto, no fundo, eu sabia que não era isso que eu realmente queria ver… eu precisava voltar mais uma vez ao centro de todo esse mistério.

Ao chegar ao local, vi que a casa onde Orígenes mantinha sua loja estava em ruínas. Era uma pilha de escombros enegrecidos, envoltos em uma mancha de fuligem que se estendia para a rua e os prédios vizinhos. Lembrei do cheiro de fumaça em minhas roupas, e um frio correu por minha espinha.

“O negócio aí foi feio.” Era o dono de um bar, do outro lado da rua, em frente ao qual eu tinha parado, enquanto olhava embasbacado. “Duma hora pra outra pegou fogo em tudo, cê tinha que ver. Nem deu tempo dos bombeiros chegarem.”

“Quando que foi isso?” perguntei, já sabendo a resposta.

“Foi ontem, no fim da tarde. A polícia tava aí… parece que tinha uns negócios meio esquisitos acontecendo lá, e eles tavam dando busca. Uns rituais de magia negra, satanismo, não sei… ouvi dizer que morreu gente.” Ele fez o sinal da cruz. “Quer dizer, antes do incêndio. Por isso que baixou a polícia aí.”

Engoli em seco. “E… tinha mais gente lá dentro?”

“Tinha um rapaz… sei não quem era.” Ainda bem, pensei. “Ele tinha entrado logo antes da polícia.”

“Mas… não saiu?”

“E deu tempo?” O homem balançou a cabeça, pesaroso. “Ninguém saiu. Nem o seu Orígenes, nem os polícias, nem esse moço. Ainda tão limpando as coisas lá. Você conhecia?”

“Eu? Não, não!” Balancei a cabeça veementemente. “Só tava passando por aqui e vi tudo acabado desse jeito… que coisa, né?”

Voltei correndo para meu carro e disparei para casa, tremendo. Agora a coisa estava ficando esquisita. Como assim, não saí de lá? –questionei. Será que tinha uma saída por trás? Eu não lembro de ter visto nenhuma. E como que eu fui parar em Sapopemba? De quem era esse sangue na minha roupa? O que realmente aconteceu comigo?

Essas perguntas queimavam em minha mente como brasas ardentes. Senti que era inútil vasculhar os escombros do Clube de Xadrez… não havia mais nada para mim lá. As respostas que eu buscava estavam em outro lugar – provavelmente próximo do local onde eu acordara algumas horas antes. Eu não fazia a menor ideia do que me aguardava lá… mas tinha certeza de que tudo o que eu conhecia sobre o mundo estava prestes a entrar em xeque.

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